Oscar Calixto
Imprensa
Como escreve Oscar Calixto
A vida me tragou enquanto eu estava tragando o teatro e o ofício de ser ator. Sempre tive e tenho outros ofícios, entende? Fui estudar outras coisas. A escrita “aconteceu” para mim, meio que “de repente” e por uma necessidade de fazer algo original, algo que eu ainda não tinha visto.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, eu tenho uma rotina matinal. Eu costumo gerenciar bem os meus horários, por mais impossível que isso me pareça em alguns momentos. Exerço muitas atividades completamente diferentes e, portanto, necessito ter uma organização extremamente disciplinada com horários. Tenho uma necessidade absoluta de trabalhar com agenda eletrônica para poder cumprir todos os compromissos que tenho durante a semana. Pela manhã, geralmente, minha rotina é tomar meu café escutando as notícias dos meus podcasts ou lendo os jornais. É o único momento do dia que tenho como manter-me informado sobre o que acontece no Brasil e no mundo. Depois disso é que a vida começa pra mim, de verdade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para a escrita, eu confesso que prefiro a noite. Tudo é sempre mais silencioso, tranquilo e calmo durante a noite. É também o momento em que eu me sinto mais criativo para escrever. Eu preciso desse silêncio para criar minhas histórias. Acho que escrever é sempre um processo muito delicado. Mas não mantenho rituais para isso. Também gosto de conhecer profundamente os temas que pretendo abordar e, para isso, leio muito sobre o assunto e faço todas as pesquisas que julgo necessárias para desenvolvê-lo. Faço isso porque eu preciso sentir que domino o assunto para poder escrever sobre ele, ou criar algo em cima dele, sabe? Mas não considero que isso seja um “ritual” necessariamente. Eu diria que é muito mais uma necessidade particular que qualquer outra coisa. Apenas isso mesmo, não mantenho nada extraordinário para escrever. Só preciso de silêncio, internet, teclado e monitor, na verdade, nada mais… Se tiver um cafezinho, também ajuda.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo espaçadamente. Concentro a demanda por projeto, na verdade. Eu definitivamente não sou aquele autor que senta numa cadeira giratória e escreve várias horas por dia, sabe? Eu não consegui e não sei se consigo ser um escritor assim e admiro muito quem consegue, de verdade. Mas em toda a minha vida eu só fiz isso no meu romance, que foi uma obra mais extensa, complexa e com muitos personagens absolutamente diferentes. Ali sim, eu escrevi diariamente durante quatro meses e de maneira absolutamente disciplinada, com horários e tudo mais. Eu até gostaria de ter sido um escritor diário em algum momento da minha vida, mas com exceção desse pequeno período, isso não foi possível, não foi “viável”.
A vida me tragou enquanto eu estava tragando o teatro e o ofício de ser ator. Sempre tive e tenho outros ofícios, entende? Fui estudar outras coisas. A escrita “aconteceu” para mim, meio que “de repente” e por uma necessidade de fazer algo original, algo que eu ainda não tinha visto. Meu avô, sim, era um escritor extraordinário. Ele, sim, era um escritor regular, desses que descrevi acima, desses que sentam em sua cadeira giratória e escrevem todo santo dia, faça chuva ou faça sol.
Ele foi muito reconhecido e respeitado por outros autores em Alagoas. Mas eu não consegui ser como ele. Contudo, não me cobro por isso. Eu entendo que até mesmo o momento em que vivo é outro. O tempo hoje parece correr mais veloz que antigamente. Creio que justamente por causa dos adventos tecnológicos, na verdade.
Entretanto, muito antes da escrita, eu me apaixonei pelo ofício do ator e decidi que esse seria o carro-chefe da minha vida há 22 anos, decidi que esse seria o meu primeiro ofício, de verdade. A única proposta de um exercício mais regular da escrita que eu tenho é um instagram intitulado de “@blogdoispernods”. Ele, na verdade, é uma variante de um Blog com o mesmo nome que possuo dentro do meu site. Essa ideia nasceu como uma proposta de ter um “espelho do meu blog” no formato de “cartões poéticos” contendo textos rápidos para a internet.
Resolvi abrir essa conta no instagram sem grandes pretensões e apenas para praticar alguns estros linguísticos e trocar ideias com outros autores. Ali, publico alguns pensamentos e impressões que anoto – quase sempre de lugares onde estou – seja na rua, em casa, num momento de espera ou indo de um lugar para outro. Também trato de pequenas reflexões e de situações diferentes que observo do ser humano em contextos inusitados.
Às vezes vejo algo que me chama atenção em alguém e escrevo ali de forma poética ou mais direta, vai muito do que acho que dá para experimentar em cima daquilo. Eu quase sempre estou “dando voz” à moça de olhar evasivo que notei, ao crispar dos dedos do homem no banco da praça ou à face entristecida de uma velha senhora sentada num ponto de ônibus prestes a ir para casa, por exemplo. Ali eu faço isso. Faço esse exercício.
Dou voz a esse tipo de coisa e a cada pequeno detalhe que sinto sobre vida, sobre o outro, sobre o ser humano ou sobre o que vou vendo e vivendo por aí sem restrições de experimentar-me nas mais diferentes linguagens. Se tem algo para ser feito, aí sim, eu mantenho uma ordem, uma disciplina até chegar ao fim. Caso contrário, não me obrigo, não me violento, não me “enquadro”. Simplesmente deixo que caia sobre mim a vontade. Ela é o que me move na escrita.
Segundo A. Schopenhauer, “o que é correto não se encerra em si mesmo, é atemporal e não cai daqui a algum tempo”. Então eu acho que não é sobre quantos livros, quantos textos, nem sobre quantos dias e horas você passa escrevendo, mas é sobre a qualidade daquilo que você escreve. Será que isso que você escreveu hoje resiste ao tempo? É isso que me pergunto… Ou amanhã será apenas um papel com tinta impressa que não dialoga mais com a atualidade? É com isso que estou preocupado.
Eu tento respeitar o fluxo da ideia, tento respeitar o novo, o tempo de maturação do pensamento que ela exige para ser transposta para o papel. Minha meta diária é uma só pra tudo na vida: “menos que ontem e mais que amanhã”. Amanhã eu sempre acho que tenho que ser melhor que hoje, seja como escritor, ator, diretor, mas principalmente como ser humano. E hoje, entendo que isso nada tem a ver com quantidade, mas tem absolutamente tudo a ver com qualidade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No meu bloco de notas eu anoto ideias, temas interessantes, frases soltas, coisas que ouvi falar, situações a serem abordadas ou cenas que podem me despertar para a criação de algo realmente interessante e que ainda não tenha sido visto.
Tenho uma certa fixação por criar o que ainda não foi visto. Entenda: É com muita humildade que busco esse lugar em tudo que faço, não com “pretensão” alguma. Aliás, trata-se de um lugar difícil, dolorido e extremamente solitário, compreendido por poucos também. É uma sensação de abandono. Não há referências para esse lugar.
É muito mais fácil ir para o que já se sabe que vai “dar certo”, que “funciona” e viva as velhas fórmulas de sempre! Mas esse lugar não enche tanto os meus olhos na arte, entende? Vou te dar um exemplo: Os meus olhos se encantam com um Van Gogh porque só ele “pinta” daquela maneira, entende? E eu acho isso extraordinário. Você reconhece um quadro dele em qualquer lugar do mundo.
O que estou falando é de uma “identidade artística”, é atrás disso que estou correndo seja como ator, diretor ou dramaturgo. É sempre essa a minha busca. Essa é a minha inquietude diária. E para encontrar esse lugar, primeiro você tem que se respeitar e se encontrar ou se reencontrar consigo mesmo. A única coisa que desejo quando escrevo meus textos é isso: É tocar os outros sabendo que naquilo que escrevi tem a minha própria “identidade artística” e não um manual de instruções que segui porque simplesmente me disseram que tenho que seguir. Compreende? Esse é um caminho que estou procurando e esse tem sido o meu “jeito” de fazer a “magia literária” ou a “magia da cena” acontecer. Essa é a minha busca em todas as áreas: seja como ator, como diretor, ou como esse escritor meio “rebelde, irregular e indisciplinado” que sou.
Acho que eu persigo o novo e, ao mesmo tempo, o novo me persegue. Porque eu me encontro com o novo em muitos trabalhos que realmente admiro, me encanto e que aplaudo. Eu leio autores de vários lugares do mundo. Eu procuro coisas novas para ler. E essas nem sempre estão na prateleira dos best-sellers. Há muita coisa realmente boa fora dessa prateleira também. Dentro de mim, essa busca é quase uma briga de cães. Diante disso, te afirmo que “começar” é sempre tão difícil quanto “terminar”.
Aquele fluxo de ideias, notas e informações que escrevo precisam ter uma certa organicidade para mim, precisam ser humanas, demasiadamente humanas e, claro, sobretudo, precisam ter a minha identidade, o meu “jeito de escrever”. Não posso escrever como ninguém.
Perseguir essa ideia, para mim, já é um fracasso. Preciso ter o meu próprio jeito de fazer, saber como dar o meu próprio toque. Nessa briga, eu sempre acabo me concentrando no “micro”, muito mais que no “macro”, porque acho que o mais simples é sempre e sempre muito mais interessante, em tudo. Só depois disso é que vou “complexando a trama”, vendo e revendo onde eu posso melhorá-la, na verdade.
Mas o primeiro movimento é como se eu virasse os baldes das tintas de Van Gogh… Elas se espalham pelo chão e eu preciso me chafurdar em todas elas, me pintar e pintar o papel com todas as cores possíveis para só depois parar para pensar “o que eu vou limpar primeiro? A mim mesmo ou o que joguei no papel?” Não me critico, não me olho, não me vejo, vou no contrário de mim mesmo, ultrapasso os limites, busco a verdade de cada um dos personagens e apenas deixo fluir sobre o papel as cenas que vejo se passarem naquele lugar, naquele ambiente, com aquelas pessoas que perversas ou não, assim são. Depois, e somente depois, é que me preocupo com os excessos, com os borrões que sujam o quadro que pintei e que agora tenho. Só depois é que me preocupo com as sombras que foram mal colocadas e que por isso pesam ou são desnecessárias para aquela tela. Só depois é que procuro pensar como posso enxugar as tintas dessa imensa tela que somente agora está quase “terminada”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinação eu definitivamente não tenho. Para nada na vida… Eu detesto a procrastinação… E isso não é média, não. É verdade. Não curto a procrastinação. As travas acontecem e eu costumo respeitá-las. Mas eu preciso resolvê-las. Eu preciso sentir que estou indo adiante sempre em minha vida e em tudo que estou fazendo a cada instante.
Não posso passar um dia sem sentir que andei um pouco mais, ainda que seja só um pouco, mas sempre um pouco mais. Sobre o medo de não corresponder às expectativas, isso é uma constante, acho que todo mundo sente um pouco isso em qualquer instância da vida, seja diante do amor desejado, do papel que pegou ou do feedback sobre o seu trabalho.
Contudo, entendo que a maior expectativa, acredito, somos nós mesmos que criamos e isso é o que mais pode nos decepcionar, na verdade. Portanto, tento simplesmente não criar nenhuma expectativa sobre nada. Apenas faço o que tem que ser feito da maneira que acredito que pode ser melhor para cada projeto, sabe? Para mim, isso tem sido um excelente exercício.
Na escrita, eu não tenho ansiedade alguma. Pelo contrário, eu gosto muito de escrever com calma. Nem sempre posso, na verdade, nem sempre dá pra ser assim, mas é o que realmente eu prefiro. Quando tenho calma, o que sai no fim é infinitamente melhor do que o que tive que escrever com pressa e tocando a boiada porque tem que ser tocada para cumprir prazos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Então, isso é uma questão pra mim. Porque eu só paro de revisar quando publico! (risos) E só paro porque “publicando”, eu não tenho mais como revisar. (risos) Eu nunca senti que meus textos estavam prontos, na verdade. Quando me perguntam se já estão, eu digo que nunca estão, mas que terminei de escrevê-los por enquanto. Para mim, eles são um eterno processo.
Quando tenho a chance de dirigir algo que escrevi, eu mudo o texto durante a construção da cena. Eu me preocupo muito que as palavras estejam na boca dos atores e, às vezes, o jeito do ator fazer a cena já me desperta uma outra necessidade, seja ela de corte ou de acréscimo de palavras ou frases. Pra mim, tem que ser humano… Demasiadamente humano. E é exatamente por isso que acho que meus textos nunca estão prontos, ou suficientemente prontos. Eles são um eterno processo. É por isso que reviso cada vez que eu abro e leio o que escrevi.
Claro, chega um momento que você vai parando de consertar, mas a verdade é que se eu fosse reeditar algum livro que escrevi ou remontar alguma peça, eu mudaria algumas coisas. Isso é fato. Sobre mostrar a outras pessoas, a resposta é sempre! Eu sempre mostro o que escrevo a outras pessoas. Em minha casa, quase todo mundo que já veio, acabou lendo uma peça, um roteiro, um poema, um conto em algum momento… Sempre acabou lendo alguma coisa em que eu estava trabalhando, que eu queria montar no teatro ou rodar no cinema. Na verdade, eu adoro ficar quietinho e apenas ouvindo as pessoas lerem enquanto avalio o quanto de humano ainda preciso buscar ou o quanto de humano que já existe ali. Isso, eu só consigo concluir bem quando ouço os atores lendo os textos que escrevi.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje eu não escrevo nada mais à mão. É tudo no computador mesmo e as ideias, notas e etc são no celular. Sou fã da tecnologia. Eu realmente gosto de novidades tecnológicas e tento usar tudo a meu favor. Uso tudo para facilitar tanto a minha vida quanto a minha escrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu acho que elas vem de um buraco negro, na verdade! (risos) Estou brincando. Mas é quase isso… Minhas ideias vêm principalmente do que absorvi na vida, do que não foi dito ou do que não foi visto ainda. Eu adoro pensar em como fazer algo que já foi feito de um modo como ninguém viu ou fez ainda. Isso me fascina. Esse é um componente básico da minha estilística de linguagem.
Quando falamos de ideias mesmo, como matéria bruta, sei que elas vem do que está por aí nas ruas, nos olhares, no que percebo que as pessoas escondem e não querem mostrar. Quase não presto nenhuma atenção no que elas querem me mostrar, meu foco está sempre no que elas me escondem. Porque acho sempre que o que as pessoas querem mostrar é uma imagem que elas, na verdade, querem que a gente compre. E isso, no fundo, não é mais que um discurso eloquente de carência e necessidade de aceitação, de autoafirmação, de “vejam como sou bacana” ou “vejam como sou legal” ou “vejam como eu sou divertida e inteligente” ou ainda “vejam como eu sou bonita e elegante”.
Eu gosto da verdade, eu tenho um compromisso com a verdade, tudo que faço gira em torno disso, sabe? As pessoas que mais me encantam na vida são as pessoas que são o que são de verdade. Eu me interesso pelo humano, pelo erro, pela falha, pelo que se esconde e não pelo que querem me mostrar. Já coloquei isso num poema certa vez, como provocação para uma reflexão. Num pequeno trecho, ele dizia assim: “Quando me dizes o que és, sei mais sobre o que não és”. Eu acho que trata-se um pouco disso, sabe?
Todo mundo está querendo mostrar alguma coisa. Mas eu pouco estou querendo ver o que eles ou elas querem me mostrar. Eu quero saber do íntimo, de quem é essa pessoa de verdade. Eu quero saber o que ela realmente pensa e não aquilo que ela diz para parecer “razoável” ou “elegante” ou ainda “uma pessoa agradável”.
Agradável para mim é olhar nos olhos e saber que temos alguém que não se esconde, que temos alguém que realmente sabemos quem é, de verdade e sabermos que, com essa pessoa, nós podemos contar. Então eu não observo o que elas querem me mostrar porque ali tem muito pouco de quem elas realmente são. Eu presto atenção nos detalhes de todas as relações que estão ao meu redor. E sei que muitas são de puro interesse.
O grande segredo de diversas artes está mais no que se esconde do que no que se quer mostrar. Essa é uma assertiva cabal para mim na escrita também. A escrita, para ser bonita mesmo, para mim, basta ser simples, verdadeira, criativa e me falar mais do que não foi dito, mais do que ficou no ar do que de qualquer outra coisa. O resto, para mim, é enfeite, sabe? É sobra, é tela manchada com a tinta que sobrou, é mito, é regra e distanciamento do que realmente é humano.
O único hábito que cultivo para me manter criativo é o cultivo da permanência dessa inquietude dentro de mim. É ela que me move, essa curiosidade infinita, essa busca, esse desencontro, esse abismo onde eu diariamente me jogo. Acho sempre que a criatividade é proveniente de uma inquietude, na verdade, de uma inconformidade com algo também. Não me conformo em escrever apenas mais uma cena de médico, ou de parto, de suicídio, de inferno, de um cara irritado, de uma mulher divertida, de uma briga de casal ou coisa assim.
Para mim, isso tem que estar ligado a algo com o qual as pessoas vão se identificar, é claro. Mas, principalmente, tem que ser algo construído de uma maneira que ainda não foi vista ou que não foi feita daquela maneira na literatura, no cinema ou no teatro. Acho fácil fazer o que todo mundo já fez. Difícil mesmo é procurar um lugar incomum, um “insolite lieu”, algo realmente diferente, genuíno e inusitado. Essa é a minha busca, essa é a minha pesquisa eterna, a minha tentativa literária recorrente que também está presente nos roteiros de cinema ou nas minhas peças de teatro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu acho que eu fui me “descompromissando” e isso foi um processo interessante pra mim mesmo. Eu fui largando as minhas próprias rédeas e deixando os cavalos correrem livres pelo pasto das coisas que eu estava criando. Quando começamos a escrever estamos sempre muito presos a padrões, regras, fórmulas, modelos e, claro, ao delírio de sermos ou escrevermos parecido com o autor que estamos curtindo ou admirando naquele momento.
Depois eu fui percebendo que era muito mais legal quando os personagens e o próprio texto estavam livres de tudo isso. Parecia-me muito mais “autêntico”, “genuíno” e “de verdade”. Se eu pudesse voltar no tempo, pediria a mim mesmo para parar de me proteger, diria que escrever é como “brincar de Deus” e que Deus só fez seres humanos falhos, mas tão falhos que acabaram crucificando seu único filho. Então, se eu pudesse voltar no tempo e encontrar aquele cara que escrevia ainda muito jovem, eu olharia para ele sorrindo e diria para ele deixar os personagens serem o que são. “Não lhes dê o pudor que eles não têm entre quatro paredes e que, na vida real, jamais teriam, rapaz!” Diria para soltar os cavalos no campo e deixá-los correrem livres pelo pasto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uau, que pergunta difícil! É difícil dizer o projeto que eu gostaria de fazer, mas ainda não comecei. Essa é uma excelente pergunta, sabia? Obrigado por fazê-la. No momento eu não tenho. Não na literatura. Porque, nela, eu acho que todo projeto que eu desejo fazer, eu acabo fazendo. Eu sou artista muito inquieto e, quando ponho um projeto na cabeça, eu vou em frente até concretizá-lo de algum modo. Isso também acontece no teatro.
Talvez nem sempre eu faça o projeto como gostaria de fazer, nas condições que eu gostaria de ter, mas… Eu sempre acabo fazendo a coisa acontecer, quando eu quero mesmo e de verdade eu faço acontecer. No momento atual estou vivendo algo exatamente assim, principalmente pelas condições que a pandemia nos impõe. Não pude realizar um projeto de teatro presencial que estava sendo tocado antes da pandemia, mas estou prestes a estrear um espetáculo virtual. Eu reescrevi uma peça que dirigi em 2009 para sete atores e resolvi montá-la na pandemia com 02 atores.
Eu nem sei se posso dizer que é uma adaptação do original porque virou outra peça completamente diferente da primeira. Excetuando os 2 textos originais que ela possui, é tudo novo de novo pra mim outra vez e pra quem vai ver também será. É outra peça, de verdade. Então é tudo mais ou menos assim: Eu queria fazer algo no teatro naquele momento pré-pandêmico e estou fazendo algo no teatro nesse momento pandêmico, preservei a ideia de fazer teatro, compreende?
Tive que mudar de projeto, tive que me adaptar às condições da pandemia, mas estou fazendo… Como ator, eu sei muito sobre os personagens que gostaria de fazer e ainda não fiz, mas como autor, eu não sei. Eu acho que sempre fiz o que eu tive vontade de fazer. A escrita é tão libertadora, não é? É tanta liberdade que um autor tem… Num romance você pode criar o universo que desejar porque os custos de publicar serão exatamente os mesmos. Então eu posso escrever uma história que se passa no Alasca que nada vai mudar. A magia da literatura é essa: Não tem um orçamento de produção que te limite por causa da locação que você escolheu. Você não tem que se preocupar com isso. Você tem que se preocupar é com a sua história e com o seu leitor.
No teatro tudo muda e no cinema também. A primeira coisa que penso ao escrever cinema ou teatro é justamente no orçamento que se tem para realizar o produto. Na literatura não… Na literatura, diante de um papel em branco você pode tanto e pode muito, não é verdade? Então é só sentar, pensar, estruturar e escrever. Como autor, de fato, eu não sei o projeto que eu gostaria de fazer, mas que eu ainda não comecei.
Já sobre “o livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe” seria sobre desmistificação do trabalho do ator. Gostaria muitíssimo de ler esse livro. Um livro que desmontasse todos os “mitos” que existem em cima do trabalho dos atores e que colocasse em xeque todos os métodos e crenças que existem na atualidade sobre o assunto. Esse livro ainda falta ser publicado. E seria o máximo que alguém o escrevesse.