top of page
​​Imprensa

Realpolitik: O Evangelho segundo São Marx

Autora de peças como “Tubarões”, Daniela costuma escrever sobre sedes que não podem ser saciadas com a igualdade e a fraternidade. É a sede de um peixe podre: o esnobismo capital do consumo. Mas existe nas figuras do executivo do garimpo Henrique (Osório, um Ethan Hawke antes do amanhecer) e do jornalista Rafael (Calixto, uma espécie de John Cazale em “Um Dia De Cão”) a bíblica sede da eucaristia com São Marx. Na luta de classes, os dois são um só corpo, no sangue derramado em nome do dinheiro. E algum ponto, ambos vão carregar as mesmas pedras. Sobretudo um paralelepípedo pesado chamada Brasil.

Realpolitik: O Evangelho segundo São Marx

É difícil não pensar no “Clube da Luta” (1999), alegoria premonitória de David Fincher sobre os colapsos do masculino, quando se está embebido pela nitroglicerina com que o ator Marcello Gonçalves rega a direção de “Realpolitik”. Chama-se assim o novo texto de Daniela Pereira de Carvalho, encenado no mais inusitado (e mais cinematográfico) dos palcos: o 14º andar do edifício Herm Stoltz, no nº409 da Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio de Janeiro, onde fica até este fim de semana. Sabe um ponto do filme com Brad Pitt (sem spoilers) no qual Edward Norton e Helena Bonham Carter observam a América fritar, do alto de um prédio (não vale dizer onde isso se dá no longa, hein?), imobilizados diante das deselegâncias que regem a civilização? Essa é claustrofóbica sensação que o espetáculo teatral estruturado sob um duo entre Pedro Osório e Oscar Calixto gera, ao promover uma autopsia em corpo
vivo do Brasil. Daniela passa pelo alarmismo, em sua escrita, mas não fica nele. Avisa logo, num diálogo: “Não é possível impedir o fluxo do capitalismo explodindo coisas”. Porém, relativiza: “Uma explosão vai chamar a atenção do mundo pra merda da hipocrisia que estrutura tudo”. É nessa gangorra dicotômica que esse experimento cênico pelas veredas do thriller, usando palavras como gotas de adrenalina, sobe e desce, furioso. Mas, a um só tempo, ele arranha não só o pop de Fincher, como o pop da fé cristã, da Bíblia.

Existem muitas corruptelas dos versículos do Novo Testamento. Em casa de português (tipo a minha), todo o dia se espalha uma. Tem uma que é totalmente “Realpolitik”, pois, por baixo de suas entranhas hitchcockianas, a peça de Daniela, versa sobre a solidariedade. É assim:

“Jesus saiu um dia com seus apóstolos e pediu que cada um desses pegasse uma pedra. E eram pedregulhos daqueles bem grandes. Seus discípulos notaram que não seriam capazes de carregar cada trambolho daquele sozinhos e resolveram se ajudar. Em dois ou três, eles carregaram, por horas, pedras pesadas. Mas São Pedro, o fundador da Igreja, que é conhecido por sua esperteza, resolveu pegar uma pedrinha pequenina que estava no chão e carregá-la sem esforço algum. Todos os outros estavam suando, esbaforidos, e ele, todo de bem com a vida, sem peso. E eles andaram por horas, com fome. Muita fome. Foi assim por um longo tempo, até que Jesus avistou uma clareira e pediu para que todos parassem e pusessem as rochas no chão. Aí, com um gesto de mão, ele transformou todas aquelas pedras em pães. E todos aqueles que carregaram peso em conjunto, num tipo de caridade que chamamos de solidariedade – ou seja, a caridade de viver em dupla, em grupo, em sociedade – tiveram muito pão pra comer. E Pedro… ah! Esse, com um pãozinho que não tampava nem o buraco do dente, achou que ia dormir faminto. Faltou a ele a humildade de ser amigo. E amigos carregam fardos juntos. Porque, na amizade, nenhum fardo é pesado demais. Por isso, cada um dos apóstolos deu a Pedro uma lasca generosa de seus pães. E ali, com a bondade dos companheiros, ele pôde se satisfazer. Mas o que mais o deixou satisfeito foi ter aprendido uma lição: o suor que escorre pelo rosto no esforço, no empenho, uma hora mata a sede”.

Autora de peças como “Tubarões”, Daniela costuma escrever sobre sedes que não podem ser saciadas com a igualdade e a fraternidade. É a sede de um peixe podre: o esnobismo capital do consumo. Mas existe nas figuras do executivo do garimpo Henrique (Osório, um Ethan Hawke antes do amanhecer) e do jornalista Rafael (Calixto, uma espécie de John Cazale em “Um Dia De Cão”) a bíblica sede da eucaristia com São Marx. Na luta de classes, os dois são um só corpo, no sangue derramado em nome do dinheiro. E algum ponto, ambos vão carregar as mesmas pedras. Sobretudo um paralelepípedo pesado chamada Brasil.

Numa geografia geométrica retangular de papel, tesoura e explosivos, decorada a partir da intervenção cenográfica de Victoriano Resende, dramatizada no realismo da Iluminação de Paulo César Medeiros, Rafael e Henrique vão brigar para ajustar contas em nome de um desastre natural. Houve o rompimento de uma barragem provocado por um deslize material (e moral) daquela empresa que castigou mais de 150 vítimas. Justiça é o que move o repórter. Por um lado… Por outro, há um sentimento de brasilidade que se reconhece na exploração do proletariado por uma burguesia sem medo de fazer escolhas que preservem seu bolso.

A partir dessa premissa, amparado em dois bons astros em corte de esgrima, Marcello dirige uma das peças mais peculiares (e pontiagudas) do ano. Daquelas que contagiam… e ficam.

As apresentações de “Realpolitik” acontecem de quinta a sábado, às 19h, e as reservas devem ser feitas pelos telefones (21) 99570 7879 / 99616 5094 / 96953 3607.

Home
Botão Home
bottom of page