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Blog Dois Pernods

Aquele poema

Atualizado: 13 de ago. de 2019



Se eu tivesse uma única chance de estar com Fernando Pessoa, por um pequeno instante, um ínfimo instante onde pudesse me colocar bem ao lado de sua escrivaninha na hora em que escrevia esse poema, com muita humildade - aquela humildade de quem admira e aprende com cada um de seus versos - ou com todos os versos escritos que existem e que são feitos como se tivessem sido arrancados da gente, eu diria a ele, quase que sussurrando ao pé do uvido: "Esse poema deveria se chamar Argonauta das Sensações, pelas tantas que ele nos faz sentir" - Sem mais, sintam um mundo:


XLVI - Deste modo ou Daquele modo

Deste modo ou daquele modo. Conforme calha ou não calha. Podendo às vezes dizer o que penso, E outras vezes dizendo-o mal e com misturas, Vou escrevendo os meus versos sem querer, Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos, Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse Como dar-me o sol de fora. Procuro dizer o que sinto Sem pensar em que o sinto. Procuro encostar as palavras à ideia E não precisar dum corredor Do pensamento para as palavras Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar. Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, Mas um animal humano que a Natureza produziu. E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, Mas como quem sente a Natureza, e mais nada. E assim escrevo, ora bem ora mal, Ora acertando com o que quero dizer ora errando, Caindo aqui, levantando-me acolá, Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso. Ainda assim, sou alguém. Sou o Descobridor da Natureza. Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele-próprio. Isto sinto e isto escrevo Perfeitamente sabedor e sem que não veja Que são cinco horas do amanhecer E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça Por cima do muro do horizonte, Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos Agarrando o cimo do muro Do horizonte cheio de montes baixos.

(Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLVI" Heterónimo de Fernando Pessoa)


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